O programa de residência médica no Brasil é, por definição expressa da Lei nº 6.932/91, uma modalidade de ensino de pós-graduação lato sensu sob forma de treinamento em serviço. Ainda que seja parte essencial da formação médica, a residência exige dedicação exclusiva do profissional e impõe limitações que extrapolam o mero vínculo educacional, aproximando-se de uma verdadeira relação de trabalho.
Nesse contexto, o fornecimento de moradia ou auxílio-moradia ao médico residente transcende o caráter opcional ou assistencialista, firmando-se como direito subjetivo decorrente da própria natureza do regime de residência e das obrigações legais das instituições que ofertam os programas, sejam públicas, privadas ou filantrópicas.
1. A previsão normativa e a responsabilidade da instituição
O artigo 4º da Lei nº 6.932/1981, que dispõe sobre a residência médica no Brasil, estabelece que os médicos residentes fazem jus a uma série de benefícios, entre eles o recebimento de moradia ou auxílio para tal finalidade, além de alimentação e uma bolsa mensal.
Esse dispositivo impõe às instituições que mantêm programas de residência médica a obrigação de assegurar condições mínimas de permanência digna aos residentes, incluindo a oferta de moradia gratuita ou o pagamento de auxílio-moradia em valor compatível com os custos locais.
É importante destacar que essa obrigação é inerente à manutenção de programas de residência médica autorizados, independentemente de a instituição ser pública, privada, filantrópica ou conveniada ao SUS. Ao optar por ofertar programas dessa natureza, a instituição assume os encargos legais que deles decorrem, sendo inadmissível transferir esse ônus ao residente, que é compelido à dedicação exclusiva e, muitas vezes, desloca-se de sua cidade ou estado de origem para cumprir a formação.
2. Aplicação a todas as instituições: públicas e privadas
Não há distinção legal que limite a obrigação ao âmbito do SUS ou a instituições públicas. Ao contrário, qualquer entidade que mantenha programa de residência médica autorizado pela CNRM, ao integrar a política nacional de formação médica, assume os mesmos deveres normativos, inclusive os de natureza socioassistencial.
Ainda que instituições privadas sustentem que não recebem repasses federais para custear tais benefícios, esse argumento não afasta a obrigação. O ônus do custeio é inerente à escolha de ofertar o programa, sendo de sua responsabilidade arcar com os encargos legais dele decorrentes. A jurisprudência de diversos tribunais tem caminhado nesse sentido.
3. Entendimento da Jurisprudência
A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) já firmou o entendimento no REsp 1339798/RS (2012/0175999-7) de que “impõe às instituições de saúde responsáveis por programas de residência médica o dever de oferecer aos residentes alimentação e moradia no decorrer do período de residência” de forma que “A impossibilidade da prestação da tutela específica autoriza medidas que assegurem o resultado prático equivalente ou a conversão em perdas e danos”.
No mesmo caminho, a Turma Nacional de Uniformização (Processo nº 201071500280550, JUIZ FEDERAL ANDRÉ CARVALHO MONTEIRO, DOU 08/03/2013) acolheu o entendimento da Corte Superior, reconhecendo o direito dos médicos residentes de moradia e alimentação durante todo o período de residência, acrescentando, de forma acertada, que “uma vez descumprida tal obrigação de fazer, deverá a mesma ser convertida em pecúnia em valor razoável que garanta um resultado prático equivalente”.
Além disso, há precedentes de diversos tribunais que reconhecem o caráter alimentar do auxílio-moradia, estendendo o direito mesmo quando não previsto expressamente no contrato de residência ou no edital de seleção.
4. Implicações práticas e medidas jurídicas cabíveis
Diante da negativa ou omissão da instituição, o médico residente deverá requerer administrativamente o auxílio-moradia, fundamentando o pedido com base na Resolução nº 2/2005 da CNRM e na Lei nº 6.932/81, desde o princípio reunindo provas da ausência de alojamento (declarações, fotografias, atas de reunião, comunicados oficiais etc.).
Caso a negativa se mantenha, é inevitável o ajuizamento de uma demanda judicial, visando não só obrigar a instituição de saúde a fornecer a moradia, inclusive por meio de um pedido liminar a ser julgado de forma célere, se houver risco à subsistência, como também de condenar a instituição a ressarcir os custos pretéritos já dispendidos.
Importante lembrar que os valores pagos em atraso serão corrigidos monetariamente com aplicação de juros moratórios e eventual indenização por danos materiais ou morais, se comprovado o prejuízo.
5. Obrigação das instituições de saúde de fornecer a moradia
Negar o fornecimento de moradia ou auxílio-moradia ao residente é violar diretamente a literalidade da lei, protegida pela jurisprudência pátria, cujo intuito é o de salvaguardar o direito do profissional em formação, que não está condicionado à conveniência da instituição, tampouco à sua natureza jurídica.
O fornecimento de moradia ou do correspondente auxílio financeiro é mais do que um benefício. É uma garantia mínima de que os profissionais da saúde, ainda em formação, tenham condições reais de exercer sua atividade com segurança, dedicação e tranquilidade.
