A multipropriedade imobiliária, informalmente conhecida como time-sharing, é um modelo de negócio relativamente recente no Direito brasileiro, regulamentado pela Lei nº 13.777 de 2018. Esse regime inovador permite que vários coproprietários detenham frações ideais de um mesmo imóvel, com uso rotativo conforme períodos determinados em convenção.
Trata-se de um modelo bastante utilizado em empreendimentos turísticos de lazer, cuja promessa é unir o acesso ao patrimônio com a redução de custos de manutenção. Entretanto, o crescimento desse setor trouxe consigo uma questão sensível: a judicialização dos distratos contratuais, especialmente quando há desistência do comprador ou inadimplemento.]
O Marco Legal: a tentativa de estabilização com a Lei do Distrato
A promulgação da Lei nº 13.786/2018 representou um marco importante para o setor imobiliário. A norma introduziu o art. 67-A na Lei de Incorporações (Lei nº 4.591/1964), estabelecendo critérios objetivos para a devolução de valores e penalidades aplicáveis nos casos de resolução contratual por inadimplemento ou arrependimento do comprador.
Entre os principais dispositivos da nova legislação, destacam-se: 1) Multa rescisória de até 25% dos valores pagos (ou até 50% em caso de patrimônio de afetação); 2)Dedução de valores pagos a título de comissão de corretagem; 3)Cobrança de taxa de fruição, equivalente a 0,5% ao mês sobre o valor do contrato, caso o comprador tenha usufruído do imóvel; e 4) Possibilidade de deduzir encargos como IPTU, condomínio e outras despesas comprovadas.
A intenção do legislador foi clara: promover equilíbrio entre a proteção do consumidor e a segurança jurídica dos empreendedores imobiliários. No entanto, a transposição dessas regras gerais para os contratos de multipropriedade revelou-se mais complexa na prática.
Multipropriedade: um regime singular que exige tratamento jurídico próprio
Diferentemente da compra de uma unidade autônoma tradicional, a aquisição de uma fração em multipropriedade envolve um regime jurídico híbrido. O comprador não adquire a totalidade do imóvel, mas sim um direito real de propriedade limitado no tempo, exercido de forma exclusiva em determinadas períodos no ano.
Essa característica acarreta implicações práticas e jurídicas que tornam a aplicação literal do art. 67-A um verdadeiro desafio.
Esses dilemas têm levado muitos casos aos tribunais, gerando decisões díspares que fragilizam o ambiente negocial. Enquanto alguns julgadores aplicam a Lei do Distrato de forma literal, outros a flexibilizam com base no Código de Defesa do Consumidor, reduzindo multas, afastando cobranças e reinterpretando cláusulas pactuadas.
A insegurança jurídica gerada pela flexibilização judicial
Ainda que a Lei do Distrato tenha estabelecido critérios objetivos para a resolução contratual, a jurisprudência não tem sido uníssona na sua aplicação aos contratos de multipropriedade. Muitos julgados reconhecem a vulnerabilidade do consumidor, especialmente diante de contratos de adesão e estratégias agressivas de venda.
Essa sensibilidade tem levado à aplicação do art. 413 do Código Civil (que permite a redução da cláusula penal excessiva), mesmo em contratos ajustados dentro dos parâmetros legais da Lei nº 13.786/2018.
Além disso, observa-se frequente, mas equivocado, indeferimento da dedução da comissão de corretagem ou o seu enquadramento indevido dentro do percentual da multa rescisória, em contrariedade ao disposto no art. 67-A e ao entendimento consolidado do STJ no Tema 938.
Outro ponto sensível é a aplicação equivocada da taxa de fruição, sem levar em consideração que a multipropriedade confere ao comprador um direito real de propriedade, de forma que, ainda que o uso será limitado, os direitos dominiais são plenamente exercidos ao longo de todo o tempo.
Essa distorção conceitual acaba por comprometer o equilíbrio contratual e gera imprevisibilidade para os incorporadores, dificultando inclusive o financiamento e o fluxo de caixa dos empreendimentos em fase de construção.
O impasse: pacta sunt servanda versus intervenção judicial
No cerne da controvérsia está a tensão entre dois princípios fundamentais:
- De um lado, o Pacta Sunt Servanda e a autonomia privada;
- De outro, a intervenção corretiva do Judiciário em nome da equidade e da proteção do consumidor.
A crítica que se impõe é que, embora a revisão judicial de cláusulas abusivas deva ser admitida em casos excepcionais, sua banalização tem gerado um verdadeiro ciclo de judicialização crônica, no qual os contratos deixam de ser uma fonte segura de direitos e obrigações.
Esse cenário contribui para a elevação de custos no setor, desestimula investimentos e, em última análise, penaliza os próprios consumidores que poderiam se beneficiar de empreendimentos bem estruturados e financeiramente saudáveis.
Conclusão: a necessidade de evolução legislativa e uniformização jurisprudencial
O regime de multipropriedade é uma modalidade que ainda está em processo de sedimentação no mercado brasileiro, mas já apresenta grandes inovações no âmbito do judiciário. No entanto, sua consolidação exige mais do que inovação contratual: exige maturidade legislativa e coerência na aplicação do direito.
Trata-se de um modelo promissor que amplia o acesso ao lazer e à propriedade de forma democrática, o que exige, de forma urgente que o Judiciário reconheça as especificidades da multipropriedade e respeite os limites normativos impostos pela Lei do Distrato, aplicando com parcimônia os mecanismos de flexibilização contratual.
Do ponto de vista prático, tanto incorporadoras quanto compradores devem buscar clareza contratual, informação adequada e, sempre que possível, soluções extrajudiciais de consenso, evitando a judicialização como via automática.
Afinal, o equilíbrio contratual não pode ser construído à custa da insegurança jurídica.
